Pensar um projeto que se relacione, conviva e crie diálogos com o imaginário de Francisco Brennand e com a sua mais ambiciosa criação, sua cidadela, a Oficina Francisco Brennand, é entender a necessidade de escuta do lugar. Cada lugar, segundo o geógrafo Milton Santos, é “um momento do imenso desenvolvimento do mundo”. Com isso, no desenvolver desta exposição, palavras superlativas, como o “mundo”, o “universo” foram recorrentes ao tratarmos da criação de Brennand. Contudo, muito antes de a criação se tornar característica de um ou outro artista no Brasil, as sociedades resultantes dos saberes e conhecimentos dos povos originários e afrodescendentes já imaginavam, já “inventavam” lugares, moradas, universos. E faziam muito mais, pois o imaginar se justificava em conexões ancestrais, no contato com seres e lugares divinizados, onde fauna, flora e espiritualidade residem em plena comunhão. Esses lugares são chamados de muitos nomes, Aruanda, Orun, Cidade, Reino. Nas tradições da Jurema Sagrada, são as Cidades e os Reinos encantados pela fumaça que nos guiam para a vida e para a morte.


Com isso, o que apresentamos nesta exposição, a partir das obras de Francisco Brennand, são artistas que comungam de criações que escutam as matas, as várzeas, as florestas, os rios. Escutam e se conectam com encantados, com as serpentes, os pássaros, com narrativas da criação do mundo, e inventam reinos. Artistas que se comprometem em não se desassociar de seu território, de sua morada, mas que confluem entre as migrações operadas a partir dos ventos e das forjas.


A Oficina Francisco Brennand fica envolta por um terreno de profunda densidade que é lar de seres diversos. Seu bioma pertence à Mata Atlântica, seu território chega a ser constituído por cerca de 700 hectares entre olhos d’água, folhas, frutos e bichos que cotidianamente se fazem presentes em toda a Oficina. Foi morada dos povos Tabajaras e, posteriormente, no século XIX, tornou-se lugar de refúgio abrigando um pedaço da extensão do Quilombo do Catucá. Hoje, sua área perpassa as cidades de Recife, Camaragibe e São Lourenço da Mata, onde encontramos remanescentes e práticas culturais que remetem a essas memórias, a exemplo dos maracatus e caboclinhos, como o Caboclinho Sete Flexas, no Recife, e o Caboclinho Tabajaras de Camaragibe.


Entre os muitos agentes que habitam de modo diário a Oficina Francisco Brennand, há também a participação de pessoas que trabalham incansavelmente para salvaguardar as histórias de seus povos, são esses mestres e mestras da cultura, lideranças comunitárias, sacerdotes e sacerdotisas das religiões de matrizes africanas e indígenas, que estão presentes em atividades artísticas e de educação do programa que atualmente constrói a Oficina, principalmente os encontros Ocupa Oficina e Trilhas do Capibaribe, importantes para a pesquisa e disseminação de um fazer que amplie narrativas únicas.


Há um canto que é comumente evocado quando se entra na mata e tem sido compartilhado através dessas ações, envolvendo saberes tradicionais e comunidades vizinhas. O canto sugere uma profundidade que não pode ser medida, um absoluto não saber, onde se respeita o desconhecido, o que não é nitidamente visível. Respeita-se, então, o que não se sabe, mas é lançado um chamamento para que outros companheiros possam acompanhar a pessoa que canta em seu trajeto. Assim, malungos e caboclinhos são convidados a adentrar este espaço. Ecoam:


Que mata é essa que nela eu vou entrar, que nela eu vou entrar, com meus caboco’linhos…

Que mata é essa que nela eu vou entrar, que nela eu vou entrar, com meus caboco’linhos…


Esta floresta foi chamada por Francisco Brennand de Mata do Segredo, mas que é conhecida comumente por Mata da Várzea, e ainda por moradores mais antigos como Mata do Catimbó, revelando a relação de praticantes de religiosidade de terreiro com ritos na mata, ou até mesmo Mata dos Brennand. Nesta última nomeação, a sua identidade de propriedade privada. Este lugar onde as folhas nascem e descansam, um caminho longo e entrada de porta da Oficina, turvado pelas sombras de árvores, entre elas macaibeiras, dendezeiros, mangueiras, jaqueiras e jambeiros, é um ambiente onde se ocultam linhas; os caminhos para suas quedas d’água não são lineares, e não existe apenas um, o trajeto se faz em seu emaranhado. Sua única reta é a da flecha antes de ser arqueada.


Partindo, então, de tantos caminhos, a tarefa de adentrar ao labirinto erigido por Francisco se complexifica, um espaço serpenteado por seres de seu imaginário, mas que também apresenta outras cosmologias endereçadas em distintos territórios, às quais o artista tomou para si, assim como também em ficções da literatura e do cinema. É preciso se dar conta da possibilidade de um lugar que abriga muitos. Brennand desperta sua contradição através de sua curiosidade e também de seu poder atrelado à posição de artista moderno. Ao se encantar pela forma do arco e flecha, mesmo sem saber inicialmente que este era símbolo do Orixá Oxossi — o Ofá —, acabou por desviar a si mesmo de uma verdade baseada em apenas um caminho projetado a partir de um único início, meio e fim.


— Texto curatorial de Ariana Nuala e Marcelo Campos —


Artistas participantes da exposição Invenção dos Reinos:

Abelardo da Hora (PE)
Abiniel J. Nascimento (PE)
Adailton de Dedé (AL)
AORUAURA (PE)
Bezinho Kambiwá (PE)
Bozó Bacamarte (PE)
Clara Moreira (PE)
Daiara Tukano (SP)
Diogum (PE)
Fakhô Fulni-ô (PE)
Francisco Brennand (PE)
Francisco Graciano (CE)
Fykyá Pankararu (PE)
Geraldo Dantas (AL)
Helcir Almeida (PE)
Ianah (PE)
Iara Campos e Íris Campos (PE)
Jaider Esbell (RR)
José Cláudio (PE)
Lidia Lisbôa (PR)
Luiz Marcelo (BA)
Elson e Mestre Gerar (BA)
Nádia Taquary (BA)
Paulo Apodonepá (MT)
Rafaela Kennedy (AM)
Rayana Rayo (PE)
Reginaldo de Mestre Manoel Quebra Pedra (PE)
Thiago Costa (PB)
Tiganá Santana (BA)
Zé Crente (AL)