“Peço licença a vocês
E um pouco de vossa atenção
Para falar de um importante rio
Que agoniza na solidão”

Sula Patrício
Cordel S.O.S Rio Capibaribe


CapiDançaBaribéNois: serpente no ar e rezo d’água


CapiDançaBaribéNois, escultura-rito de Ernesto Neto, reinaugura o Estádio da Oficina Francisco Brennand e, assim, cumpre o papel para o qual seu fundador o havia destinado quase 20 anos atrás: o de ser “espaço para exposições temporárias e eventos culturais”. Se Francisco desejava abrir sua cidadela para outros criadores, foi justamente a partir da escuta desse generoso convite que surgiu a obra que agora e aqui se instala.

Uma de suas sementes foi o encontro do artista carioca com Peixe-folha (1986), um mural do ceramista pernambucano. Defrontado com a imagem de um ondulado e híbrido bicho – meio cobra, lagarto e planta –, Ernesto se sentiu identificado. Afinal, formas serpenteantes abundam na obra desse escultor cuja matéria central não é a densidade do barro, como no caso de Brennand, mas a leveza dos tecidos e, em especial, do crochê.

A tradicional técnica, popular em diversas partes do mundo, tem fascinado o artista pelos vazios que a constituem, pontos vazados que produzem formas moldáveis e permeáveis. Ampliando a escala do crochê, que passa a ser feito com os dedos, Ernesto Neto tem criado esculturas grávidas de ar que, flutuando na paisagem, fabricam um repertório de curvas, caminhos, buracos, espirais e avessos que tomam a porosidade entre corpos e topologias como horizonte estético e político.

Profundamente tocado pelos movimentos sinuosos que nos cercam, dos bichos às águas, desde os anos 1990 o artista vem desafiando as linhas e os ângulos retos da racionalidade moderna ocidental, exercitando o desfazimento das muitas dicotomias culturalmente estabelecidas, a exemplo dos binômios “eu/nós” e “dentro/fora”. Com essa intenção, suas esculturas e instalações têm atuado como dispositivos de contato, de relação e atravessamento. Como corpos, peles e membranas, não são peças autônomas a serem contempladas a distância, mas situações no tempo e no espaço que se querem habitadas, percorridas, tocadas, experimentadas.

Nessa direção, inundado pela centralidade dos fluidos em sua pesquisa poética, embebido pela presença do Capibaribe na cidade do Recife e tomado pela memória corporal do arrasto da água quando através dela caminhamos, Neto mirou naquela criatura de muitas patas de Brennand o curso de um rio que é, em si mesmo, um indomesticável bicho em movimento. Como em Cão sem plumas (1950) ー icônico poema sobre o Capibaribe no qual João Cabral de Melo Neto diz, do Rio, que “Suas águas fluíam (…) com as ondas / densas e mornas / de uma cobra” ー, Ernesto vislumbrou uma escultura estendida ao longo da comprideza do Estádio, serpenteando-o com as curvas de seu corpo como se fosse uma colorida jiboia; atravessando sua arquitetura como quem percorre um curvilíneo curso fluvial. Uma escultura-percurso que nos convoca ao movimento, posto que o caminhar lhe é imanente, constitutivo.

CapiDançaBaribéNois cruzou, ela mesma, o Capibaribe, implicando sua forma instalativa ao seu processo de formação enquanto rito. Margeando o Capibar (Monteiro), o Parque Caiara (Iputinga) e a ONG do Rio (Mata da Várzea) para reverenciar, através desses espaços, a luta pela preservação e educação ambiental, a escultura percorreu o caudaloso e lamacento rio, do Marco Zero à Oficina Francisco Brennand, numa travessia embalada pelo movimento do grupo Rivus e pelo batuque do mestre Rodrigo Scofield, do Maracatu Real da Várzea e do grupo Coco de Duas. Metamorfoseando-se num cortejo, o bicho ー feito de crochê a partir de tiras de chita e voil de algodão e, depois, ritualmente preenchido por folhas secas ー tornou-se um rezo coletivo pela saúde do Capibaribe, das sociedades e das relações entre humanos e não-humanos: existências profundamente conectadas umas às outras desde as águas que transpassadamente nos constituem.

Em sua deriva fluvial, CapiDançaBaribéNois deparou-se com o lixo e o esgoto que vazam não só das residências abastadas ou das favelas situadas às margens metropolitanas do Capibaribe, como também com a poluição que se acumula ao longo de seu curso desde o agreste pernambucano, em cujas águas são despejados rejeitos industriais de toda espécie, a exemplo dos corantes utilizados na lavagem do jeans. Como sujeito que é, o Rio enfrenta as violências sociais e ambientais que igualmente afetam milhões de pessoas estruturalmente impossibilitadas de acessar seus direitos constitucionais à dignidade e, portanto, à plenitude da vida.

Esculpir-rezar o Capibaribe é, assim, uma forma de agir socialmente. Ao fazê-lo, CapiDançaBaribéNois soma-se a iniciativas como a Inciti – Pesquisa e Inovação para as Cidades (UFPE) e a projetos como o Acalanto (na comunidade do Detran) e o Iputinga Sociocultural, o qual, sobre as paredes do Estádio, grafitou as sonhadas formas e cores de um rio limpo e navegável. Organizações que têm lutado não apenas pelo Capibaribe, mas por nós, a coletividade à qual se refere o sonoro título da instalação. A artista Libélula também pintou as paredes do espaço, nelas presentificando uma entidade das águas.

Tocada pela magia das águas, pela resiliência do Capibaribe, pela força do trabalho de tantas pessoas e movimentos sociais, bem como pela vivacidade de uma pequena árvore que – oriunda da nascente do rio, no município de Poção – aterrou-se como seu umbigo ao som das palavras de Agda, CapiDançaBaribéNois evoca a abundância da vida, a renaturalização do Capibaribe e os frutos que dela estão por vir: como a possibilidade de, quiçá num futuro próximo, podermos corriqueiramente chegar até a Oficina Francisco Brennand conduzidos pelo silencioso bailado de suas vigorosas águas.


– Texto da curadora Clarissa Diniz



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